1. Considerações Iniciais

 

A agricultura é uma das bases econômicas do Brasil e representa grande parte das exportações do país. Impulsionado pela competitividade global, a tecnologia tem desempenhado um papel cada vez mais importante na agricultura nas últimas décadas. Dentre as inovações do setor, destacam-se os cultivares, termo utilizado para se referir a uma variedade de espécie vegetal, desenvolvida e selecionada por ter características específicas, como resistência a doenças, adaptação a condições climáticas diversas, etc.

 

A pesquisa e o desenvolvimento de cultivares são fundamentais para a evolução da agricultura e exigem muitos investimentos, pois envolve diversas etapas, como a seleção de materiais genéticos, a realização de cruzamentos controlados e a avaliação de características agronômicas. Esse processo ainda demanda aportes financeiros significativos em terrenos, estufas, casas de vegetação, equipamentos de laboratório e uma equipe multidisciplinar de mão-de-obra qualificada.

 

Haja vista tantos investimentos, a proteção de cultivares é importante para garantir aos seus desenvolvedores o seu retorno financeiro, incentivando ainda mais a produção de novas cultivares e inovação em geral. Não à toa, a proteção de cultivares e a regulamentação deste instituto são temas de discussão no ramo da Propriedade Intelectual.

 

Assim, esta cartilha explorará os principais aspectos jurídicos relacionados às cultivares, desde sua definição até o processo de registro no Brasil.

 

  1. Afinal, o que são cultivares?

 

O conceito de cultivares está previsto na Lei Federal nº 9.456/1997 (“Lei de Proteção de Cultivares” ou “LPC”), regulamentada pelo Decreto nº 2.366/1997, o qual também dispõe sobre o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (“SNPC”), que é gerenciado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (“MAPA” ou “Ministério da Agricultura”).

 

De acordo com o inciso IV do artigo 3º da LPC, cultivares são variedades de plantas cultivadas de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que sejam claramente distinguíveis de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que sejam homogêneas e estáveis quanto aos descritores através de gerações sucessivas, e sejam de espécies passíveis de uso pelo complexo agroflorestal, descritas em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos.

 

Em outros termos, cultivares são variedades cultivadas de plantas obtidas por meio de técnicas de melhoramento genético que as tornem diferentes umas das outras, seja em sua coloração, porte ou até resistência a doenças.

 

  1. Como funciona a proteção de cultivares?

 

A proteção de cultivares é regida pela LPC e pela Convenção Internacional para a Proteção das Novas Variedades Vegetais (“UPOV”)[1]. É um sistema sui generis, decorrente de um compromisso assumido pelo Brasil no âmbito do Acordo TRIPS, tratado internacional que estabelece padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio[2].

 

Essa proteção se aplica ao material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta inteira, garantindo ao titular o direito à reprodução comercial no território brasileiro e vedando a terceiros, durante o prazo de proteção, a produção com fins comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização do material de propagação da cultivar sem sua autorização. Sem essa proteção, qualquer pessoa poderia multiplicar as sementes ou o material de propagação da planta e comercializar sem pagar qualquer recompensa ao criador.

 

A LPC estabelece que “novas cultivares” e “cultivares essencialmente derivadas” de qualquer gênero ou espécie vegetal podem receber proteção legal no Brasil[3]. Nesse sentido, a LPC dispõe que:

 

  • a nova cultivar é aquela que não foi vendida no país há mais de 12 (doze) meses em relação à data do pedido de proteção e que, observado o prazo de comercialização no Brasil, não tenha sido oferecida à venda em outros países sem o consentimento do obtentor, por mais de 6 (seis) anos para árvores e videiras e 4 (quatro) anos para outras espécies; e

 

  • a cultivar essencialmente derivada é predominantemente derivada da cultivar inicial ou de outra cultivar essencialmente derivada, sem perder as características essenciais resultantes do genótipo ou da combinação de genótipos da cultivar da qual derivou, mas claramente distinta da cultivar original por uma margem mínima de descritores estabelecidos pelo órgão competente, e não tenha sido oferecida à venda no Brasil ou em outros países sem o consentimento do obtentor, pelos mesmos prazos estabelecidos para a “nova cultivar”.

 

A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual das cultivares é realizada por meio da concessão de um Certificado de Proteção de Cultivar, concedido pelo SNPC. Esse certificado confere ao seu titular o direito exclusivo de produzir, reproduzir, comercializar, exportar, importar, utilizar e vender a cultivar protegida.

 

Sua proteção é válida apenas dentro do território brasileiro. Não obstante, existem acordos internacionais que facilitam a proteção de cultivares em vários países, como a já mencionada UPOV e o “Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura” (“TIRFAA”). Por meio desses acordos, é possível obter proteção em diferentes países, desde que sejam cumpridos os requisitos estabelecidos em cada um deles.

 

Importante mencionar que o Certificado de Proteção de Cultivar não se confunde com a inscrição da cultivar no Registro Nacional de Cultivares (“RNC”), que tem o mero propósito de habilitá-la para produção e comercialização no país. O RNC, por si só, não garante ao requerente/mantenedor o direito de exclusividade sobre a cultivar.

 

O prazo de proteção das cultivares também não se confunde com os prazos de proteção das patentes: sendo um direito sui generis, a LPC determina que a proteção de novas variedades vegetais é válida por um período determinado, que varia entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos, dependendo da espécie e da forma de propagação, exigindo ainda o pagamento de uma anuidade.

 

Cabe ressaltar que a proteção conferida às cultivares não é absoluta, e existem exceções que permitem o uso livre de determinadas cultivares. Por exemplo, pequenos produtores rurais têm permissão para multiplicar sementes para doação ou troca entre pequenos produtores rurais que atendam a certos pré-requisitos em programas de financiamento ou apoio conduzidos por órgãos públicos ou organizações não governamentais autorizados pelo Poder Público. Essas exceções permitem que os agricultores tradicionais tenham acesso às cultivares sem infringir a lei.

 

O criador de uma cultivar protegida é obrigado a manter uma amostra viva à disposição do órgão competente durante todo o período de proteção. Caso não cumpra com essa obrigação, o seu Certificado de Proteção de Cultivar pode ser cancelado.

 

Findo o período de vigência do Certificado de Proteção de Cultivar, a cultivar perde a proteção e se torna de domínio público, podendo ser utilizada livremente por qualquer pessoa, sem necessidade de autorização ou pagamento de royalties.

 

Requisitos de proteção

 

Para ser passível de proteção, de acordo com a legislação vigente, a cultivar deve cumprir os seguintes requisitos:

 

  • ser produto de melhoramento genético;
  • ser de uma espécie passível de proteção no Brasil;
  • não haver sido oferecida à venda ou comercializada no exterior há mais de 4 anos, ou há mais de 6 anos, no caso de videiras ou árvores;
  • não haver sido oferecida à venda ou comercializada no Brasil há mais de 12 meses;
  • possuir denominação apropriada;
  • ser claramente distinta das demais cultivares existentes;
  • ser homogênea; e
  • ser estável.

 

Neste sentido, a cultivar homogênea é aquela que, utilizada em plantio em escala comercial, apresenta variabilidade mínima quanto aos descritores que a identificam, segundo critérios estabelecidos pelo (o SNPC). Por sua vez, a cultivar estável é aquela reproduzida em escala comercial que mantenha a sua homogeneidade através de gerações sucessivas.

 

O papel do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC)

 

O SNPC, órgão que faz parte do Ministério da Agricultura, é responsável por analisar os pedidos de proteção de cultivares, emitir os certificados correspondentes e divulgar as novas espécies vegetais e suas características mínimas para que possam ser diferenciadas das demais. Seu papel é fundamental para a garantia da proteção dos direitos de propriedade intelectual dos obtentores de novas cultivares e para o desenvolvimento do setor agrícola brasileiro.

 

Além disso, é possível realizar consultas à lista do SNPC para conhecer as cultivares protegidas no país, pois sua base de dados públicos contém informações sobre o nome científico e comum das espécies, a denominação da cultivar e os protocolos de pedido de proteção.

 

Requerimento

 

Para solicitar a concessão do Certificado de Proteção de uma cultivar é necessário preencher um requerimento assinado pelo obtentor, que pode ser uma pessoa física, jurídica ou seu representante legal, e protocolá-lo no SNPC. Os herdeiros, sucessores ou cessionários do obtentor também têm o direito de solicitar a proteção da cultivar, desde que apresentem os documentos que comprovem essa condição.

 

O pedido de proteção deve ser específico para uma única cultivar e deve conter as seguintes informações:

 

  • espécie botânica e nome da cultivar;
  • origem genética da cultivar;
  • um relatório descritivo preenchendo todos os descritores exigidos;
  • uma declaração garantindo a existência de uma amostra viva disponível para exame pelo órgão competente, juntamente com sua localização de armazenamento;
  • nome e endereço do requerente e dos melhoristas;
  • comprovação das características de DHE (“Distinguíveis, Homogêneas e Estáveis”) tanto para cultivares nacionais quanto estrangeiras;
  • relatório de outros descritores que indiquem a distinção, homogeneidade e estabilidade da cultivar, ou comprovação de testes conduzidos pelo requerente em conjunto com controles específicos designados pelo órgão competente;
  • comprovante de pagamento da taxa de pedido de proteção;
  • declaração sobre a existência de comercialização da cultivar no Brasil ou no exterior;
  • declaração sobre a existência de proteção, pedido de proteção ou requerimento de direito de prioridade em outro país, relacionados a cultivar em questão; e
  • extrato que identifique claramente o objeto do pedido.

 

Importante destacar que os testes para avaliar a distinção, homogeneidade e estabilidade da cultivar, requisitos essenciais para sua concessão, devem ser realizados antes da apresentação do pedido. O procedimento técnico conhecido como “DHE” é utilizado para comprovar que a nova cultivar, ou uma derivada, é distintamente identificável em relação a outras cultivares com características conhecidas, além de ser homogênea em suas características ao longo de cada ciclo reprodutivo e estável na repetição dessas características ao longo de gerações sucessivas. O MAPA disponibiliza instruções específicas com relação à DHE para cada espécie de cultivar[4].

 

Procedimento

 

O processo de análise de um requerimento contendo todas as informações necessárias, acima descritas, leva até 60 (sessenta) dias para ser concluído.

 

Após a publicação do pedido, é emitido o Certificado Provisório de Proteção, um título temporário que permite ao titular explorar comercialmente a cultivar de acordo com a LPC.

 

Posteriormente, decorrido o prazo de 15 (quinze) dias para interposição de recursos, ou a publicação oficial da decisão caso haja recurso, o Certificado de Proteção de Cultivar é emitido.

 

Extinção da Proteção

 

O direito de proteção das cultivares pode ser extinto ou cancelado em várias situações. Conforme mencionado anteriormente, de acordo com a LPC, o direito de proteção é extinto após um determinado prazo, dependendo da espécie em questão (18 ou 15 anos).

 

No entanto, a legislação também prevê a possibilidade de extinção do direito de proteção das cultivares por: (a) renúncia pelo titular, desde que não prejudique os direitos de terceiros; e (b) cancelamento do Certificado de Proteção.

 

Independentemente da circunstância, quando a proteção é extinta, a cultivar passa a ser de domínio público. Especificamente em relação às hipóteses de cancelamento, o Certificado de Proteção pode ser cancelado administrativamente ou mediante solicitação de qualquer pessoa com interesse legítimo. As razões para o cancelamento incluem perda de homogeneidade ou estabilidade, falta de pagamento das taxas anuais, não cumprimento dos requisitos legais, não apresentação da amostra viva e comprovação de que a cultivar causou impactos negativos no meio ambiente ou na saúde humana.

 

O titular é notificado da abertura do processo de cancelamento e tem o direito de se manifestar durante o procedimento. A decisão de cancelamento produz efeitos a partir da data do requerimento ou da publicação do início do processo.

 

  1. Considerações Finais

 

O mercado de sementes e plantas desempenha um papel importante na economia brasileira, porém ainda enfrenta desafios significativos em relação à proteção jurídica de cultivares.

 

Nesse sentido, tanto o setor público quanto o privado discutem a importância de alterar a lei para ampliar a competitividade do agronegócio brasileiro. É fundamental que qualquer modificação seja concebida para incentivar o desenvolvimento de tecnologias e o aumento da produtividade agrícola.

 

Não à toa, as perspectivas futuras para a proteção jurídica de cultivares são promissoras. Com a modernização da legislação, espera-se um aumento significativo na pesquisa e no desenvolvimento de novas variedades de plantas, além de estimular a competitividade do setor agrícola brasileiro.

 

A equipe de Campos Thomaz & Meirelles Advogados está preparada para auxiliar seus clientes na obtenção e defesa de cultivares, entre outros ativos de propriedade intelectual, bem como sempre está atualizada com as novidades legislativas e disponível para oferecer consultoria sobre o assunto.

[1] Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n° 3.109/1999. Disponível em: <D3109 (planalto.gov.br)>.

[2] Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n° 1.355/1994. Disponível em: <27-trips-portugues[1] (www.gov.br)>.

[3] LPC, Art. 4. “É passível de proteção a nova cultivar ou a cultivar essencialmente derivada, de qualquer gênero ou espécie vegetal”.

[4] Disponíveis em: <http://www.agricultura.gov.br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-agricolas/protecao-decultivar/formularios-para-protecao-de-cultivares>.

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